2020 – 2021, por Francisco Guimarães Foi um ano duro para muita gente. Muitos de nós estão cansados, zangados ou frouxos como as flores sem água para beber. Quem se digna a fazer arte deparou-se com dificuldades nunca antes vividas; quem vive plena e intensamente a vida em família reencontrou mais do que uma vez as vestes pretas da morte e o seu cajado; quem dialoga diariamente com a solidão ficou sem palavras para sobreviver na aridez do deserto; quem dá a vida aos outros esbarrou, sem qualquer margem para fugir, num campo de batalha sem igual, sem tecto, de superfície escorregadia e rugosa, ao mesmo tempo que tropeçava continuamente nas pedras em forma de braços lacrimejantes a suplicar por dignidade: os padres, os médicos, enfermeiros e auxiliares, as pessoas que trabalham em instituições, e muitos outros que, discretamente, espelham na sua profissão laivos de eternidade. Vivi também eu momentos difíceis, e olhei para muitas vidas sem alegria e sem esperança; cada um de nós pôde verificar com certeza que o sofrimento é universal, que existem sempre vidas mais exigentes do que a nossa, e que, mesmo assim, há coisas bonitas para além do cenário horrendo que serve de pano de fundo da nossa existência. Aprendi com a Etty Hillesum – num diário que hoje voltei a ler – que o cenário interessa pouco, que não é a partir dele que construo o verdadeiro significado daquilo que me acontece. Mas ainda não sei como viver assim diariamente, olhando para o mundo como quem olha para o fundo do poço da sua própria casa. Por isso, não sendo eu capaz de negar a realidade, pude ser testemunha da existência de outras realidades além da minha, e pude comprovar que o Natal existiu na mesma, ainda que tenham sido amargurados e tristes os seus cantos solenes. O cheiro da lareira das casas quentes no inverno emanou pela fresta da porta do meu quarto; o sol a bater na janela do meu vizinho sentado à mesa de jantar foi um quadro de Picasso digno de contemplação; o barulho dos pássaros a fazerem ninhos nos tubos dos esgotos foi demasiado sonoro para os meus ouvidos; e o mar a bater nas rochas, regando as dunas juntamente com a chuva, foi bálsamo para os animais e plantas que da água fizeram raízes. Há um ano, naqueles dias típicos de Sintra em que chove de manhã e está sol de tarde, dias em que muita gente se desalenta por causa do mau tempo, e depois se espanta por ver o Sol nascer, um amigo meu, o Padre Duarte, ao olhar para os sorrisos de quem se pasmava pelo dia bom que tinha surgido de repente, disse-me: “Já viste? Achamos que tudo está sob a nossa alçada, sob o nosso controlo, e somos surpreendidos com a alegria daquilo que nos acontece de belo. Assim é possível que cada um de nós dê mais valor ao sol que estava escondido há umas horas”. Hoje, lembrei-me destas palavras que, pelos vistos, ecoaram em mim mais do que 365 dias, e serviram de mote para poder espevitar o meu coração inquieto, de “homem vivo”, como escreve o poeta Daniel Faria. Este ano aprendi a deixar-me espantar com aquilo que me rodeia; aprendi que não posso manusear com o meu resquício ditatorial de alto controlador a bonança e a tempestade; aprendi a olhar pasmado o sorriso de quem tirou a máscara; aprendi que é preciso identificar e ver com a inteligência dos animais os precipícios, os horizontes e todas as coisas que estão diante dos nossos olhos; aprendi que o silêncio purifica, cerze subtilmente as linhas do meu corpo e do meu espírito, e é nele que o real aflora à superfície, é nele que mergulhamos nas nossas próprias profundezas de corais, algas, areias movediças, pedras, pérolas e mistério; aprendi a descobrir aquilo que o olhar do outro, recheado da mais aguda inteireza, fragilidade e esperança, significa para mim. Apesar de estar cansado, posso arcar com estes tempos, e, compreendendo toda a gente que chegou ao limite das suas forças, verificando que a fraqueza algumas vezes se sobrepõe no coração do homem, desejo poder continuar a viver de forma desmedida, sem medo, até que tudo em mim se esgote naquilo que quero e naquilo que faço – não acredito que a minha vocação seja a sobrevivência a esta pandemia. Há-de ser qualquer coisa maior do que isso – uma novidade, talvez. E, por isso, peço para que este ano acabe para que outro possa começar. Não porque 2020 tenha sido um ano misteriosamente negro para tanta gente à minha volta, mas porque anseio pelas cores infinitas da alvorada. Sinto que não vale a pena esquecer o ano difícil que passou, nem desejar que ele termine antes de tempo. Não o posso apagar da memória, nem peço que assim seja. Tenho de o deixar habitar em mim como ele foi e não como queria que tivesse sido. Não me cabe a mim dizer como é que um ano deveria decorrer, e, tal como a Etty Hillesum, luto para que cada dedo meu não se aflija com o terror que a vida tem, mas antes se anime por aquilo que acontece de harmonioso, de justo e de admirável. É essa a razão que me faz querer ser como ela, um “cronista destes tempos vivemos”, podendo dizer que a vida é bela, ainda que muitas coisas me assustem; podendo transmitir tudo aquilo que vi e que vivi dentro e fora de mim. Sobreviver a coisas como esta e, ainda assim, ter a certeza que a vida vale a pena ser vivida, é aquilo que peço para 2021. “Se este sofrimento não levar a um alargamento de horizontes, a uma maior humanidade pela derrocada de todas as mesquinhices e superfluidades desta vida, nesse caso foi em vão” Etty Hillesum. Francisco Guimarães