A alegria já não pode ser a mesma de antes

Mas o que a Gertrudes tinha dito era esquisito como uma mentira. Joana ficou calada a cismar no meio da cozinha.
De repente abriu-se a porta e apareceu uma criada que disse:
— Já chegaram os primos.
Então Joana foi ter com os primos.
Daí a uns minutos apareceram as pessoas grandes e foram todos para a mesa.
Tinha começado a festa do Natal.
Havia no ar um cheiro de canela e de pinheiro. Em cima da mesa tudo brilhava: as velas, as facas, os copos, as bolas de vidro, as pinhas doiradas. E as pessoas riam e diziam umas às outras: «Bom Natal». Os copos tilintavam com um barulho de alegria e de festa. E vendo tudo isto Joana pensava:
— Com certeza que a Gertrudes se enganou. O Natal é uma festa para toda a gente. Amanhã o Manuel vai-me contar tudo. Com certeza que ele também tem presentes.
O jantar do Natal era igual ao de todos os anos.

E consolada com esta esperança Joana voltou a ficar quase tão alegre como antes.
                                                                                         in A Noite de Natal, Sophia de Mello Breyner Andresen

Pela primeira vez na vida, Joana põe em causa a sabedoria de Gertrudes. A realidade impõe-se e obriga-a a ajuizar entre aquilo que lhe é dito e o que ela vive. Já não é só o brilho e a alegria da festa, mas a esperança que daí nasce, para responder ao desejo do seu coração.

Uma pergunta que nasce de uma pergunta que põe tudo em questão, e que a move à procura de uma certeza. O jantar de Natal era igual ao de todos os anos mas, desta vez, vivido à luz de uma esperança só ela capaz de a alegrar, quase como antes. A alegria já não pode ser a mesma de antes, porque agora tem dentro a consciência da dor; Mas é uma alegria mais verdadeira, não camuflada, totalmente real, dentro da qual essa mesma dor é salva pela esperança.

 

Teresa Vaz Guedes