A caneta e a minha mãe, por Francisco Guimarães

A minha mãe é como uma caneta de tinta permanente, daquelas Parker pretas ou azuis que eu usava na escola quando era uma criança irritante. Lembro-me com um sorriso discreto que não gostava daqueles depósitos de tinta. Não gostava mesmo. Borravam todos os meus cadernos, insistiam em acabar a meio dos ditados ou das composições e tudo demorava uma eternidade com uma coisa daquelas entrelaçada nos dedos.

Do 1º ao 4º ano, nunca me foi concedida a hipótese de usar uma simples caneta Bic. Bic laranja, de escrita fina ou Bic cristal, de escrita normal. Caramba, tudo teria sido tão fácil assim.

E agora, volvidos alguns anos, ao olhar para uns cadernos cobertos de pó, percebo que aquela caneta era a que tornava a minha letra mais bonita. E aquele cuidado, aquele cuidado que tinha ao escrever para não me enganar, é o mesmo que tenho ao agarrar firmemente o desejo de beleza e verdade que a minha mãe ajudou a escrever no meu coração, com a sua marca indelével e nunca transparente. E as poças de tinta, espalhadas pelas páginas brancas, mesas de estudo ou prateleiras, eram sinais da presença de alguém que sempre quis caminhar ao meu lado, de uma mãe que, mesmo longe, a trabalhar, se fez presente, enquanto eu fazia os trabalho de casa. Se tudo demorava uma eternidade com uma caneta assim, era para que eu pudesse experienciar com as minhas próprias mãos o mistério do tempo, o valor da espera e a experiência do crescimento. Era difícil porque a realidade é assim mesmo, era lento e demorado para deixar fermentar a própria vida. Se eu ficava com as minhas mãos sujas de tinta, era o vestígio de liberdade de uma mãe que sempre deixou fazer, experimentar, crescer ou ser. Nunca facilitou, apenas tornou claro quando precisei de uma luz de cabeceira. E se também ela estava manchada com restos de tinta, era porque o caminho tinha de ser aquele, apontado com clareza através de uma mão que desejou partilhar a sujidade de um filho outrora perdido no meio da floresta.

A grande diferença entre a caneta Parker que eu usava quando era miúdo e a minha mãe é que uma está perdida e obsoleta e outra está mais viva do que nunca, a marcar comigo o passo ritmado da minha vida.

Francisco Guimarães