Adultos há muitos…, por Catarina Almeida

Porque ela sabia que a Gertrudes conhecia o mundo. (…) Porque ela era cozinheira há trinta anos. E há trinta anos que ela se levantava às sete da manhã e trabalhava até às onze da noite. (…) E conhecia todas as receitas de cozinha, sabia fazer todos os bolos e conhecia todas as espécies de carnes, de peixes, de frutas e de legumes. Ela nunca se enganava. Conhecia bem o mundo, as coisas e os homens.

in A Noite de Natal, Sophia de Mello Breyner

Nós somos adultos que se preocupam com as crianças, que organizamos a vida em função dos filhos, do ballet, do futebol e das festas de anos dos seus amigos. Muitas vezes, deixamos de ir ver um espetáculo de ballet, de ir a um jogo de futebol e às festas de anos dos nossos amigos, a não ser que seja um programa “em família”, a que possamos ir todos, porque o dinheiro não estica, nem o tempo, nem a energia. Fazemo-lo de todo o coração, desejosos de os amar acima de todas as coisas, colocando-os em primeiro lugar e no centro de todos os assuntos.

Nós somos adultos que se preocupam com as crianças e organizamos a vida dos filhos, com o objectivo de lhes proporcionar todas as “experiências” importantes para crescer. Diversificar as actividades desportivas, culturais e artísticas; aprender várias línguas e programação; dar-lhes as competências e capacidades necessárias para ter um futuro melhor, para estarem preparados para um mundo que ninguém sabe ainda como vai ser. 

E depois há a Gertrudes. A Joana d’”A Noite de Natal” sabia que a Gertrudes conhecia o mundo porque ela fazia o que tinha a fazer. Levantava-se cedo, trabalhava até tarde, conhecia as receitas, os bolos, as carnes e os legumes. 

Nós somos adultos de muitos tipos mas é tão bom encontrar adultos como a Gertrudes. Que falta que fazem!… 

Adultos há muitos, mas poucos vivem o protagonismo da própria vida com aquele entusiasmo e aquela “pica” que magnetiza verdadeiramente as crianças. E que as educa, e forma, e faz crescer. 

Eu estou profundamente convencida que gostaria de ser como a Gertrudes, porque desejo para os miúdos a relação que a Joana tem com a cozinheira mas também porque todos os dias, invariavelmente, me acontece estar a trabalhar no computador, a ler um livro, a ouvir uma música e vir alguma criança ter comigo e perguntar “O que é que está a fazer?”.

Afinal, o que é que cada um de nós está a fazer, ou melhor, a viver, que seja capaz de interpelar o coração dos miúdos e fazê-los desejar ser grandes e um dia poder “conhecer o mundo, as coisas e os homens?”

Catarina Almeida