Brincar com o fogo, por Catarina Almeida

O Duarte estava a chorar. Assim quando se chora mesmo de tristeza, mesmo por ser ferido, mesmo por sentir uma injustiça sobre si. Achei estranho porque ele não é dessas coisas. É mais de bola e corridas e desenhos maravilhosos. É um miúdo rijo, alegre e pouco dado a sentimentos. Achava eu.  Encontrei-o naquele estado e fui-lhe perguntar porquê.

– Roubaram-me o sumo que tinha trazido para o almoço.

Confesso que me deu vontade de rir mas contive-me. Aquele bocado de gente estava desfeito em lágrimas e tristeza porque… lhe tinham roubado o sumo. O seu sumo. Pois bem, se é por isso, vamos resolver o problema do dramático furto! (Entretanto não sei se sonhei ou ouvi mesmo umas vozes de adultos a dizer que era incrível, que não percebiam como é que as crianças agora lhes dava para isto, mexem em tudo, comem coisas que não são deles, mas eu acho que devo ter sonhado…)

A minha veia de inspectora saltou de felicidade. Tinha um plano perfeito para deslindar o mistério. Reconstruir os passos de cada sujeito presente e ausente, encontrar provas, enfim… Desilusão… Demorei três segundos a descobrir a malvada colega que tremia o beicinho com a barriga cheia de sumo de tutti-frutti.

Estava estampado nos olhos chorosos da Rita que tinha sido ela a não resistir a um bongo fresquinho… Chamei-a e ela desatou a chorar convulsivamente.

Fui com ela para um sítio resguardado e enchi-me de ternura, só me apetecia dar beijinhos àquele cotomiço de seis anos que, pela primeira vez, sentia a dor do seu próprio mal. Disse-lhe isso mesmo. Estás triste, claro, com medo do que eu vou dizer, claro, com vergonha de ter sido apanhada, claro. Mas nada disso tem tanto mal como o mal que ela própria sentia no coração. Só isso já era pena suficiente.

Chamei o Duarte, que continuava indignado e ferido pela injustiça de que fora vítima. 

– Olha, a Rita já me contou a verdade a mim. Queres contar ao Duarte?

– Sim…

Foi o que saiu num fio de voz, tal como “fui eu” e “desculpa” logo a seguir. O durão continuava mal-encarado e com lágrimas a cair. Desculpas? Silêncio. E perguntei-lhe:

– Já alguma vez fizeste um disparate?

– Não! – respondeu ele peremptório.

Tive um ataque de riso e desta vez já não consegui disfarçar. Terá sido por causa das minhas gargalhadas ou por se dar conta da tolice que estava a dizer, mas começou-se a rir e acrescentou:

Já, já!… – com os olhos de quem, de repente, percebe exactamente o que a amiga estava a sentir.

– Pois é, miúdos, o maior problema das asneiras que fazemos é o mal que nos faz a nós próprios e aos nossos amigos.

Acabei de dizer esta frase e eles sorriram com ar mais descansado do mundo. Voltaram para os lugares e almoçaram todos contentes.

E esta historieta toda é para quê? Para me lembrar a mim própria que andamos a brincar com o fogo. Podemos castigar, podemos fazer conferências e reuniões sobre os roubos na Escola, podemos criar um sistema anti-roubo com alarme e tudo. Mas se não enfrentamos o problema da natureza da pessoa, de quem somos, do que nos constitui realmente, viveremos sempre insatisfeitos. Já os miúdos, foram almoçar todos contentes.

Catarina Almeida