Cartas de pessoas como nós – o arquivo documental da Fundação Maria Ulrich, por Mário Nascimento e Mário Gouveia

Há vidas que se cruzam pelos caminhos de carteiros e se organizam pelas regiões das franquias postais. Assim aconteceu com Maria Ulrich e os seus pais através da troca de cartas, telegramas e coloridos bilhetes postais – pedaços de papel onde se resguardaram notícias, opiniões e uma variedade de pensamentos e emoções, que Maria Ulrich decidiu preservar para memória futura.

Nas longas décadas em que o telefone foi um equipamento usado com economia, mesmo entre os mais ricos, a comunicação foi sobretudo feita através da escrita. Deste modo, a Fundação Maria Ulrich tem à sua guarda o arquivo desta família, constituído por correspondência, fotografias, faturas comerciais, desenhos e ephemera (nome dado a tudo aquilo que foi impresso ou escrito sem a intenção de ser guardado, como as folhinhas de programa de um espetáculo, os avisos ou pequenos cartazes – independentemente do seu interesse artístico – e os esboços ou rascunhos).

Neste arquivo constam as cartas de namoro entre Rui Ulrich e Veva de Lima, independentemente da distância a que estivessem os amados e as cartas trocadas com familiares, permitindo a descoberta de pequenos episódios que, não sendo fundamentais, nos aproximam dos remetentes e destinatários por serem pessoas como nós. Naturalmente, incluem-se cartas de outras figuras da sociedade e cultura portuguesas, com elogios e felicitações, mas também sobre desentendimentos e críticas. Este universo de natureza pessoal traz-nos, frequentemente, perspetivas pessoais sobre momentos da história nacional e local.

Por outro lado, o conjunto de documentos relacionados com Veva de Lima é particularmente importante no contexto do projeto da Casa Veva de Lima, documentando e permitindo o estudo de diversos aspetos da vida e obra de Veva de Lima, quer do seu método de redação, através dos inúmeros rascunhos de cartas, demonstrativo  do cuidado que Veva de Lima colocou na correspondência que manteve, burilando e revendo a escrita epistolar ora em folhas completas, ora em pequenos pedaços de papel agrupados de forma mais ou menos frágil. Quer nos documentos que permitem contextualizar o espólio da casa e as obras nela efetuadas. Ou ainda, fora das quatro paredes, as diversas iniciativas organizadas e produzidas por Veva de Lima.

A consciência da importância deste arquivo foi muito presente em Maria Ulrich, que procurou a sua catalogação nos anos 80, antes da sua morte. Terá sido essa consciência que terá determinado a existência de tantas cartas originais de missivas enviadas aos seus destinatários e posteriormente reunidas no arquivo. Algumas (poucas) fotocópias dessas cartas juntaram-se aos originais, porventura disponibilizadas por remetentes que não se quiseram separar destas antigas cartas.

O arquivo da Fundação Maria Ulrich, foi enriquecido com os registos da sua própria vida, os seus documentos, os seus escritos, memórias e projetos. Os carteiros e as franquias postais mudaram, naturalmente, mas o empenho na preservação de “papelada” e a constituição de um acervo documental manteve-se em Maria Ulrich.

Ao fim e ao cabo, os primeiros esboços biográficos dos seus pais, em folhas manuscritas soltas e num caderno de eventos organizado cronologicamente, foram feitos não apenas das memórias que Maria Ulrich tinha dos acontecimentos, mas também da leitura e sistematização deste extenso conjunto de documentos.

Um acervo documental ficou guardado dentro da casa onde morou com os seus pais e que se tornou a sua própria casa, após a morte de Rui Ulrich e Veva de Lima. Disperso por vários armários e divisões da casa, este conjunto foi legado por determinação testamentária à Fundação Maria Ulrich que, ciente do seu interesse e sua importância informativa, decidiu concluir a sua organização e digitalização para que no futuro seja possível a sua preservação e divulgação.

Mario Nascimento, Historiador- EGEAC/Museu de Lisboa

Mário Gouveia- Técnico de arquivo, CML Lisboa/ Arquivo Fotográfico