Como um náufrago acordando, por Catarina Almeida Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. (Sophia de Mello Breyner, Arte Poética III) Nestes cem anos de Sophia, muito se disse e tudo o mais seria ainda pouco. Ontem tive a sorte de me cruzar com uns amigos que se juntaram para “a” ler, para “a” encontrar… Respirei fundo e sentei-me. Não tinha que fazer nada, só gozar aquele momento. Que bom que estar sentada numa cadeira a ouvir “dizer” Sophia!… Pus-me a pensar… Gostava que as minhas aulas fossem tal e qual assim. Gostava de pôr os miúdos diante das coisas e lhes acontecesse isto: ficar totalmente captados pela beleza, por algum significado que começa a dialogar connosco… Em relação a cada coisa, por mais pequenina que seja, o que eu queria mesmo é que as crianças fizessem esta experiência: ser interlocutores da realidade. Deste meu desejo, Sophia é mestra. Esta abordagem a que gosto de chamar “pedagogia do encontro” é semelhante à sua “perseguição do real”, às suas tentativas de desenhar círculos à volta das coisas que encontra e chegar a chamar-lhes “poemas”. É simples… Estar na presença “das coisas”, deixar-se tomar por elas, aceitar o risco e o desafio solene que é deixar a realidade falar. Discute-se sempre se o centro da educação é a criança ou o professor, as competências ou os conteúdos, as capacidades ou as teorias. Estou cada vez mais convencida que nem uns, nem outros, por si só. O centro, o núcleo, o “caroço” da educação só pode ser o real, o que existe, todas as coisas que nos aparecem à frente e quase que pedem para ser conhecidas, reveladas. Chamam por nós – pssst, pssst… – e pedem que as descubramos, que nos deixemos conquistar pelo que trazem de novo ou de renovado. Como diz Sophia, estamos por cá como náufragos, acordando: (…) Um homem só na areia lisa, inerte Na orla dançada do mar. Nos seus cinco sentidos, devagar, A presença das coisas principia. Sejamos nós como estes náufragos acordando para a presença das coisas e rapidamente começaremos a caminhar. Tenho a certeza que, nesse momento, as crianças vão caminhar connosco, sem hesitações. Catarina Almeida