Deram-me tudo o que queria. Mas ao Manuel ninguém deu nada.

Subiu a escada e foi para o seu quarto. Os seus presentes de Natal estavam em cima da cama. Joana olhou-os um por um. E pensava:

— Uma boneca, uma bola, uma caixa de tintas e livros. São tal e qual os presentes que eu queria. Deram-me tudo o que queria. Mas ao Manuel ninguém deu nada. (…)
«Que frio lá deve estar!», pensava ela.
«Que escuro lá deve estar!», pensava ela.
«Que triste lá deve estar!», pensava. (…)

Foi à janela, abriu as portadas e através dos vidros espreitou a rua. Ninguém passava. O Manuel estava a dormir. Só viria na manhã seguinte. Ao longe via-se uma grande sombra escura: era o pinhal. (…)

«Hoje», pensou Joana, «tenho de ir hoje. Tenho de ir lá agora, esta noite.Para que ele tenha presentes na Noite de Natal.»

in A Noite de Natal, Sophia de Mello Breyner Andresen
O que faz a Joana ir levar os presentes ao Manuel? E, para isso, a enfrentar o frio, a escuridão, a tristeza do pinhal?

Recapitulemos… A Joana encontrou um amigo chamado Manuel. Nunca tinha tido um amigo e aquela experiência fez-lhe pular o coração na garganta. Depois começou a aventura de ver se a alegria continuava no dia seguinte. E cada dia que passava era mais alegre. A Sophia não conta mas não é difícil de imaginar uma amizade em que o outro entra na nossa vida e, quanto mais desvenda de si, mais nos descobrimos a nós próprios… Nesta história, a curiosidade sobre o que não é dito leva-me a pensar no coração da Joana, preenchido por uma presença tão desejada, ainda que desconhecida até esse dia…

Esse coração preenchido… é uma superabundância de graça, é uma gratidão sem limites que impele a Joana a ir levar os presentes ao Manuel. Deram-me tudo o que queria. Mas ao Manuel ninguém deu nada. O primeiro passo é a consciência de que me deram tudo, foi-me dado tudo; só depois nasce o desejo de ir ao encontro do Manuel porque a ele ninguém deu nada.

Quando a nossa vida é invadida pela consciência de que me foi dado tudo, somos tomados, tal como a Joana, por uma energia que permite enfrentar o frio, a escuridão e a tristeza de todos os pinhais da vida. Como veremos, não sem dificuldade, não sem hesitação. Mas capazes de arriscar a liberdade e a afeição, saindo de nós próprios ao encontro do outro.

Catarina Almeida