Ela nunca se enganava. Conhecia bem o mundo, as coisas e os homens.

À avó Eugénia
Então Joana foi à cozinha ver a cozinheira Gertrudes, que era uma pessoa extraordinária porque mexia nas coisas quentes sem se queimar e nas facas mais aguçadas sem se cortar, e mandava em tudo, e sabia tudo. Joana achava-a a pessoa mais importante que ela conhecia. (…)
— E achas que o meu amigo vai ter muitos presentes?
— Qual amigo? — disse a cozinheira.
— O Manuel.
— O Manuel não. Não vai ter presentes nenhuns.
— Não vai ter presentes nenhuns!?
— Não — disse a Gertrudes abanando a cabeça.
— Mas porquê, Gertrudes?
— Porque é pobre. Os pobres não têm presentes.
— Isso não pode ser, Gertrudes.
— Mas é assim mesmo — disse a Gertrudes fechando a tampa do forno.
Joana ficou parada no meio da cozinha. Tinha compreendido que era «assim mesmo».
Porque ela sabia que a Gertrudes conhecia o mundo. Todas as manhãs a ouvia discutir com o homem do talho, com a peixeira e com a mulher da fruta. E ninguém a podia enganar. Porque ela era cozinheira há trinta anos. E há trinta anos que ela se levantava às sete da manhã e trabalhava até às onze da noite. E sabia tudo o que se passava na vizinhança e tudo o que se passava dentro das casas de toda a gente. E sabia todas as notícias, e todas as histórias das pessoas. E conhecia todas as receitas de cozinha, sabia fazer todos os bolos e conhecia todas as espécies de carnes, de peixes, de frutas e de legumes. Ela nunca se enganava. Conhecia bem o mundo, as coisas e os homens.
                                                                                                     in A Noite de Natal, Sophia Mello Breyner Andresen
A avó Eugénia era muito parecida com a Gertrudes – menos a parte de discutir com o homem do talho e saber o que se passava na vizinhança.
A avó Eugénia estava quase sempre na cozinha – ou na sala da costura – e cirandava com delicadeza entre tachos e panelas de dimensões apropriadas para os cinco filhos, mais noras, genros e netos que vinham muitas vezes “a casa da Mãe”. Quando eu era pequena, não percebia como é que aquela miudeza de senhora podia ser Mãe de tanta gente… Ò Mãe quer ajuda? Não menina, não…
Não tenho lembrança de conversar com a avó Eugénia porque ela não falava muito. Quando lhe perguntávamos coisas, dava respostas como a Gertrudes: curtas e simples mas sempre certeiras. Não nos escondia nada. Os pobres não têm presentes e é assim mesmo, é uma frase que podia ter sido a minha avó a dizer. E com esta frase tão simples, a Joana compreendeu que era assim mesmo. Com a avó Eugénia era igual.

De onde vêm a certeza e confiança que certas Gertrudes suscitam em nós? A Gertrudes poderia ter explicado à Joana que é preciso combater a pobreza, ou poderia ter pintado a situação de modo menos dramático, ou poderia mesmo ter… mentido! Para a Joana não ficar triste. Para a Joana não ficar traumatizada. Para a Joana ser poupada à vida. A Gertrudes não faz assim e a minha avó também não fazia.

A Gertrudes conhecia o mundo porque ia ao talho, à peixaria e à fruta, trabalhava até às onze da noite e conhecia todas as receitas do mundo, e as espécies de carne, peixe, fruta e legumes. Daí lhe vinha a autoridade que a Joana reconhecia sem duvidar um segundo.
E assim a Sophia me lembrou que educa mais quem vive e menos quem explica… Como a avó Eugénia.

 

 

Catarina Almeida