Esta água é para ti O Vasco tem cinco anos e já nos conhecemos há dois. É uma criança tímida e com um ar introvertido; penso que tem a ver com o seu feitio, pouco expansivo e, por vezes, até tristonho. Fui-me aproximando dele com gestos pequenos: dizer-lhe bom dia especificamente a ele, sorrir-lhe demoradamente à espera que ele me responda com um esgar arrancado a ferros, sentar-me ao pé dele ao almoço e perguntar-lhe se está bom… Enfim, tudo momentos aparentemente casuais mas que não o são. São gestos decididos mas que – na minha cabeça – são invisíveis, são quase indiferentes. Na segunda-feira, fomos passear com os miúdos e, com a caloraça, toda a água parecia insuficiente. Fui buscar águas para alguns que me estavam a pedir e dei uma garrafinha ao Vasco. O petiz pegou na garrafa como se fosse um troféu e preparava-se para beber 25 cl de água de um trago. Assim estava tudo encaminhado quando, de repente, parou de beber a olhar para a garrafa. Sobravam um ou dois golos. Veio ter comigo e disse: – Catas, esta água é para ti. – Porquê, Vasco? – Porque eu sei que tu gostas de mim. Mesmo quando não estás cá, eu sei que tu gostas de mim. Eu, que não tinha sede, fiquei com a garganta seca e com vontade de chorar. Bebi a água toda que sobrava. Ele foi-se embora e o assunto terminou ali. Eu fiquei o resto do dia a pensar o que leva uma criança de cinco anos a sacrificar dois golos água com 30º C. O que leva um cotomiço daqueles a viver com simplicidade uma das questões mais difíceis que nós, adultos, enfrentamos? O que é o sacrifício, senão uma escolha sagrada, um ofício, um gesto sagrado, por amor de algo maior e mais verdadeiro? Dou-te estes golinhos de água porque sei que gostas de mim e, no fundo, é só isso que conta, não é…? Eu queria a água, mas quero mais o teu bem. Simples. E, assim, fez-me dar conta que os pequenos gestos decididos não se perdem na torrente dos dias mas são pão e água de amor verdadeiro. Catarina Almeida