Falta sempre alguma coisa, por José Feitor

«Falta sempre alguma coisa, há um vazio em cada meu intuir.»

Há alguns anos, enquanto fazia a minha primeira peregrinação a pé, tomei consciência de que ando muito de cabeça para baixo. Só consegui perceber isso porque, de tempos em tempos, quando levantava a cabeça, ficava mesmo maravilhado com a paisagem onde estava.

Antes de estar em isolamento social fui com um grupo de jovens de 11 anos para uma semana de aula no exterior. O local onde estávamos era, como aquelas paisagens que ia vendo de vez em quando, uma possibilidade de experimentar a beleza da natureza criada para cada um de nós. Levei alguns meses a preparar uma aula no exterior: o que queria que eles aprendessem, como queria que eles aprendessem, onde e o que iria recolher para avaliar. Tudo ficou muito bem definido. Mas lá, é impossível ficar indiferente ao que a realidade me impõe. Uma ribeira, água límpida e gélida, pedras espalhadas que permitem um belo desafio em tentar passar para a outra margem, e um caminho por entre água e rocha até chegar a uma cascata monumental, impossível de observar sem ser passar o desafio do caminho. Perante isto, não podia continuar com a ideia que tracei na minha cabeça. A realidade impera. A proposta foi alterada para uma experiência de ouvir, observar e contemplar. Ouvir a água que corre e que bate com toda a força nas rochas, as rãs que ali habitam, os alfaiates que caminham sobre as águas como que por magia. Observar a diversidade de vida que ali existe, num local aparentemente pedregoso, a vegetação exuberante da paisagem que circunda, as dificuldades que vão surgindo no caminho… até chegar lá, ao sítio mais belo da região. Assim é a nossa vida. Estar atento aos sons que nos chegam, observar com todo o cuidado, com pormenor para descobrir o que de mais belo existe e que aparentemente está escondido; contemplar a beleza que existe ao nosso redor e, como andamos sempre de cabeça para baixo, não observamos.

E quando assim fazemos, a vida torna-se um lugar de beleza, sem que as pedras e os desafios desapareçam, mas os miúdos aprendem a estar mais atentos e a desfrutar a realidade. Não a realidade que eles desejam ou que acham que deve ser. Mas a realidade tal e qual como ela se manifesta. E é aqui que se joga o risco de educar.

José Feitor