Famílias para Deus, por Rui Corrêa d’Oliveira Conta-nos a Ir. Lúcia que ao longo da sua vida muitas vezes lhe pediram que contasse como era a sua família e a dos seus primos. Para responder a estas e a muitas outras perguntas, pediu licença para passar ao papel um conjunto de notas a que chamou «Apelos da Mensagem de Fátima», que se tornariam no seu último testemunho escrito de quanto lhe foi dado viver. Terminada a 25 de Março de 1997, esta colectânea de notas tomou forma de livro e veio à estampa em pleno Grande Jubileu do ano 2000. Em nada divergente das «Memórias», onde permanece o conteúdo essencial da Mensagem de Fátima, a leitura desta nova obra completa e enriqueça-as, sendo de grande ajuda para a sua correcta interpretação. Logo a abrir, a primeira Nota é dedicada por inteiro às «Famílias dos Pastorinhos». Com indisfarçável ternura e saudade, descreve-nos o dia-a-dia das duas famílias, tão próximas e tão amigas que pareciam uma só, «que os filhos sentiam-se à vontade tanto na casa dos tios como na própria». A primeira afirmação que lhe ouvimos, antes de qualquer outro pormenor, é a de que «eram duas famílias cristãs» aquelas, «onde o Senhor foi escolher as humildes crianças, para, por seu intermédio, realizar os seus desígnios». Enquanto vai retratando com minúcia a intimidade da vida verdadeiramente pobre que levavam, dá-nos nota de que a viviam numa grande alegria, podendo-se dizer mesmo que eram famílias felizes. Mas, sobretudo, ressalta do texto que o tempo era ritmado pelo acontecimento cristão. Desde logo, a consciência de que o que tinham lhes era dado por Deus e que era Deus quem os sustentava, quer pelo que da terra lhes vinha com o trabalho das suas mãos, quer pela aceitação do desígnio de Deus manifestado em cada filho que nelas nascia. Esta abertura ao divino, este amor ao dom da vida, esta consciência de que Ele «é tudo em tudo», foi para mim uma descoberta comovente que me revela o cuidado com que o Céu preparou o grande encontro com os três primos de Aljustrel. A intimidade das suas vidas com a natureza e o transcendente, em que é o sol a marcar os tempos de trabalho e em que os alimentos variam com a estação, invadidos pela consciência de que é o Senhor que tudo ordena e a tudo preside, traz-me à memória o que de mais puro e melhor tinha o homem medieval. Foi num berço assim que a Jacinta, o Francisco e a Lúcia nasceram, educados no amor e educados na Fé. São inúmeras as descrições dos mais variados gestos de ternura, desde os muitos beijos que davam aos pais, pois «que, para matar saudades, os beijos nunca são demais», até àquela história encantadora do primeiro figo maduro que a Lúcia apanhou e que, em vez de comer, veio correndo dar à mãe; a senhora Rosa dos Santos, enternecida, deu-lhe um beijo e quis que o guardasse «para repartir à noite com o pai e os irmãos», pois se «um figo para todos não era nada», o amor que ia em cada bocadinho do primeiro figo do ano, «era muito e esse era o que a todos fazia felizes». Em famílias assim em que se dispõe apenas do essencial, aprende-se a viver no respeito pelo outro, na partilha, na ajuda mútua e na amizade. Mas não são menos as referências à vivência da fé cristã. Conta-nos a Ir. Lúcia que era nos joelhos dos pais e no colo das mães «que os filhos aprendiam a pronunciar o Santo Nome de Deus» e a conhecer «aqueloutra Mãe que estreitando nos braços o Menino Jesus, os acolhia também a eles com o mesmo carinho»; eram cuidadosos em baptizar os filhos aos oito dias de nascidos «para apagar de suas almas a mancha do pecado original»; pontuais a mandá-los à catequese, ainda que eles mesmos «fossem seus mestres em casa», nas horas da sesta e do serão; o dia da Primeira Comunhão era de solene alegria «porque Deus visitava uma vez mais» as suas casas, no «retorno a Deus da alma inocente que lhes havia confiado»; onde quer que estivessem respeitavam o toque das Trindades, parando e levantando-se para rezar as três Ave-Marias, em memória daquele instante em que Deus irrompeu na História, fazendo-Se homem no seio de Maria; a reza diária do Terço, reunida a família ao fim do dia, antecipava o significado de um dos mais fortes pedidos que Maria lhes havia de trazer. De famílias assim não se sai teólogo, mas sai-se cristão; não se sairá letrado, mas sai-se profundamente humano. O privilégio de uma graça particular, primeiro pelo Anjo, depois por Maria, completou tudo quanto haviam recebido. Foi assim que Deus conduziu os caminhos das suas vidas até à plenitude da santidade. Do muito que com Fátima vou aprendendo, a vida destas duas famílias, a formação para a vida e para Deus que nelas se recebia, a obediência a Cristo e à Igreja e a alegria com que abraçavam a sua própria condição, são seguramente uma referência que me educa como homem, como pai e como cristão. É assim que diante da minha família, tomo consciência do que faço ou não faço, do que digo ou omito, do que dou ou recuso. A luz de Fátima invade mais esta parcela da minha vida, chamando-me a cumprir também aqui o Seu desígnio, para que seja também a minha… uma família para Deus. Rui Corrêa d’Oliveira