Levantar o olhar, por Catarina Almeida No meio de tantas aventuras, Pinóquio chega a um momento crucial da sua vida. Tormentas, regressos e fugas foram marcando o percurso do boneco, que se debate entre o desejo de se tornar um menino de verdade e as aparências de distração e leveza, que prometem uma vida simples e despreocupada. Chegado à Terra dos Brinquedos, tudo parece ir pelo melhor: nem um dia de obrigações, nem uma hora de tarefas, nem um minuto de sacrifícios. Alegria, gargalhadas e diversão máxima. Até que, ao acordar certo dia pela manhã, repara nas suas orelhas de burro. Todo ele se transforma num burro. A leitura simplista de “quem só brinca é burro” não é suficiente para aprender algo de verdadeiro com este episódio. É preciso lê-lo até ao fim, é preciso relê-lo à luz das nossas ilusões de vidas descomprometidas. Depois de se transformar em burro, é vendido a um circo onde se tornará a “estrela da companhia”. Uma estrela de acrobacias, de coreografias e saltos incríveis. É uma estrela de performance para entreter o público. Quanto mais as pessoas se riem e aplaudem, mais o Pinóquio fica triste. No meio de tamanha humilhação, tornado um burrinho de circo, calha-lhe naturalmente levantar o olhar – naturalmente! Porque embora tenha decaído para o estado de “animal”, o que o define é o desejo de levantar o olhar! – e eis que lá no alto, num camarote elevado, vê a Fada Azul com um colar onde traz o retrato do rosto de um boneco de madeira. Começa a gritar: Ó Minha Fada! Ó Minha Fada! Da sua boca, saem apenas zurros que aumentam o excitamento dos que assistiam ao espetáculo do circo. Um burro a zurrar… O Pinóquio entristece-se profundamente com aquela vida de burro porque conhece outra vida. Sabe bem o que significa viver como filho, ao ponto de o mero vislumbre do rosto da Fada o fazer vibrar e ser capaz de vencer toda a tristeza. E os seus zurros, apesar de divertirem o público, são o grito de um coração que não desiste de procurar e que é capaz de reconhecer o seu lugar quando o vê. As nossas escolas e as nossas casas podem ser Terras dos Brinquedos – ou, melhor traduzido, Terras dos Patetas – ou podem ser camarotes do circo, onde os adultos trazem o rosto das crianças impresso no coração. Para que as crianças e os jovens, quando lhes calhe naturalmente levantar os olhos, nos possam ver e reconhecer, como adultos, como companheiros no caminho até nos tornarmos meninos e meninas de Verdade. Catarina Almeida