Mas continuou a caminhar

«Tenho medo», pensou ela.

Mas resolveu caminhar para a frente sem olhar para nada.

Quando chegou ao fim da rua virou à direita e meteu a um atalho entre dois muros. E no fim do atalho encontrou os campos, planos e desertos. Ali, sem muros nem árvores nem casas, a noite via-se melhor. Uma noite altíssima e redonda e toda brilhante.

O silêncio era tão forte que parecia cantar. Muito ao longe via- se a massa escura dos pinhais.

«Será possível que eu chegue até lá?», pensou Joana.

Mas continuou a caminhar.

Os seus pés enterravam-se nas ervas geladas. Ali no descampado soprava um curto vento de neve que lhe cortava a cara como uma faca.

«Tenho frio», pensou Joana.

Mas continuou a caminhar.

in A Noite de Natal, Sophia de Mello Breyner Andresen

 

A decisão de ir levar os presentes ao Manuel estava tomada: a Joana abriu a porta do jardim e saiu. Mal saiu, ficou com vontade de voltar para trás. As árvores, o céu e a rua tinham-se transformado em coisas medonhas e estavam cheios daquele desconhecido que assusta.

Tenho medo, pensou ela. Será possível chegar até lá?, pensou ela. Tenho frio, pensou ela.

Por três vezes, Sophia coloca-nos, através da Joana, uma questão essencial para viver. E quando a vida nos assusta, quando nos sentimos incapazes e limitados para alcançar o objetivo? A resposta n’A Noite de Natal é surpreendente: continuou a caminhar. A Joana continuou a caminhar com medo, com incapacidade e com frio.

A Joana caminhava porque tinha sido atraída por alguma coisa, começou a caminhar porque tinha sido tocada pela irresistível presença de um Amigo. Neste mundo em que somos constantemente seduzidos pela ideia de perfeição, pode parecer que, para dar passos, existem condições prévias: quando já não tiver medo, vou. Quando conhecer perfeitamente o trilho, vou. Quando tiver o equipamento adequado para enfrentar o frio, vou. Invariavelmente, estas condições não se verificam e acabamos por ficar exactamente no ponto onde estamos.

Pelo contrário, a Joana começou a caminhar “sem olhar para nada”. Não pode ser verdade que a Joana não olhava para nada… Ela olhava para a única coisa que permite caminhar com medo e com frio: a certeza de que iria encontrar o Manuel.

A única condição para fazer o caminho é ter sido atraída por uma experiência tão verdadeira que aumenta o desejo e faz crescer o coração. E, às vezes, quando menos esperamos, damos por nós sem medo e sem frio…

Catarina Almeida