Não podemos sucumbir, por Francisco Guimarães

Estado de emergência: dia 7

Acordei de sobressalto a sentir que a almofada se foi tornando mais firme durante a noite, não me deixando dormir nem sequer fechar os olhos. É impossível não ficar comovido, preocupado e abalado ao olhar para estas nuvens carregadas de incerteza que pairam sobre cada um de nós. E é bom que isso aconteça, para não adormecer intensamente ao mesmo tempo que escuto lá fora as granadas que assombram a noite. Para espairecer, comecei a olhar para umas fotografias de Sintra, da Praia Grande, enquanto imaginava os salpicos das ondas do mar sólidas, geladas e batidas daquela região, os falcões-peregrinos a baloiçar com o vento e os raros instantes de sol que, quando brilha, encara as rochas de frente, como se estivesse a querer dialogar com elas.
Aquelas imagens trouxeram-me parte da liberdade que precisava para agir, esfriando cada osso e cada músculo do meu corpo, como se de um mergulho se tratasse. Um mergulho salgado na espuma branca e iodada de ondas que anseiam ser maiores do que aquela arriba granítica e imponente.

Tentei escrever e não fui capaz, dei uma volta ao quarto à procura de qualquer coisa que me fizesse despertar e lembrei-me de começar a ler o diário da Etty Hillesum. Já tinha lido as suas cartas e são de uma beleza e de uma dureza paradoxalmente indescritíveis. Fui desafiado por um grupo de amigos a ler com eles durante a quarentena alguma coisa que nos pudesse ajudar a viver este tempo como queremos que ele seja vivido – deixando que o que está a acontecer atinja diretamente o nosso coração.

É esse o efeito que a Etty Hillesum pode ter em mim, tal como a minha almofada que não me deixa dormir. O efeito de uma lança apontada ao meu peito, que me pede uma resposta de olhos bem abertos à realidade que encontro à minha volta!

E é tudo. Agora, de carne viva e desassossegada, volto à leitura da “Rapariga de Amesterdão”.

“Queria dizer apenas o seguinte: a miséria aqui é realmente terrível e, ainda assim, à noite, quando o dia caiu num abismo atrás de mim, costumo caminhar a passo enérgico ao longo do arame farpado e, nessas alturas, volta a assolar-me o sentimento de que esta vida é algo de glorioso e magnífico e que, um dia, teremos de construir um mundo totalmente novo. E quantos mais delitos e horrores se derem, mais amor e bondade teremos de oferecer em contrapartida, sentimentos que temos de conquistar dentro de nós. Podemos sofrer, mas não podemos sucumbir. E se escaparmos a estes tempos imaculados no corpo e na alma, mas sobretudo na alma, sem rancor, sem ódio, então também nós teremos algo a dizer” (Etty Hillesum)

Francisco Guimarães