Nem tudo o vento levou, por Catarina Almeida

A nossa vida foi abalada e as nossas escolas também. Surgiram problemas novos e ficaram mais visíveis as velhas questões que estavam escondidas como o pó debaixo do tapete. Fomos pondo para ali, com a ideia de tratar do assunto quando tivéssemos mais tempo, melhores vassouras ou uma esfregona mais capaz. Só que veio o vento, levou o tapete, o pó espalhou-se e pôs a sala toda a espirrar. 

Um dos temas mais debatidos tem sido o perigo de deixar alguns alunos para trás. Quem achar que este é um mal da pandemia, desengane-se. A escola “à distância” veio apenas pôr em evidência uma dificuldade que nem sempre é enfrentada.

A escola portuguesa (e não só) assenta na ideia que um amigo definiu esta semana como um “percurso de certificação”. Dizemos às crianças e aos jovens: “agora senta-te aí durante uns anos, regista a informação que te vou dar, adquire as competências que eu defino como necessárias para seres um bom cidadão e, no fim, se tiveres sucesso, passo-te um certificado”. Os alunos passam anos na escola para serem certificados como cidadãos. A caricatura é exagerada e simplista, sobretudo porque exclui grandes e excelentes comunidades educativas e escolares que nascem e crescem para contrariar esta ideia terrível da escola. No entanto, serve o propósito: esta é a realidade da maioria das crianças que vão à escola. Rapidamente compreendemos que alguns não cabem neste sistema de certificação. Neste percurso, alguns ficam e ficarão sempre para trás sempre que ficar para trás a sua humanidade, as suas inquietações, as suas perguntas sobre o sentido do que estão ali a fazer. Sobre o que estão a fazer no mundo. Mais do que a falta de meios ou recursos, esta circunstância esclareceu o alcance do problema: faz falta uma companhia, alguém que acompanhe um caminho de humanidade – e não de certificação! – e esteja disposto a percorrê-lo na primeira pessoa.

As tentativas habituais consistem em construir um sistema mais perfeito e um modelo mais eficaz. É sempre bom reflectir sobre a escola que queremos para o século XXI, mas hoje gostaria de ir por outro caminho…

Ao longo das últimas semanas, conversei com mais de cem professores, educadoras, pais, muitos deles meus desconhecidos. Fiquei novamente surpreendida com o que está a acontecer silenciosamente… 

Por um lado, oiço nas notícias os relatos de uma “hiper-mega-tera” escola centralizada e repetidamente adjetivada como democrática porque – supostamente – chega a todos da mesma maneira. Indigno-me com o discurso oficial, repetido acrítica e ideologicamente, na esperança que os futuros cidadãos certificados sejam meros papagaios.

Por outro lado, comovo-me com as iniciativas de professores para chegar aos seus alunos. Fazem coisas incríveis! Educadoras de infância à beira da reforma que aprendem a usar as tecnologias, professores impedidos de contactar os alunos que fazem blogs, vídeos, partilham números de telemóvel pessoais… No meio da dificuldade que é dar aulas a olhar para um computador, em casa, com os filhos a pedir ajuda e atenção, conheço professores que ligam a pedir ajuda para aquela família mais desamparada. Contam-me que fazem aulas completamente novas para responder à circunstância actual. Sem se gabar, referem a aula individual que deram no feriado pelo Whatsapp a um aluno que não tinha percebido a matéria. Trocam ideias e pedem recursos para chegar a este e àquele jovem, que conhecem pelo nome e apelido. “Ele gosta imenso de ler, tens aí livros que emprestes e mandávamos pelo correio?”.

No meio de tudo isto, dou por mim a pensar que o problema do abandono escolar e de deixar alunos para trás é, na verdade, um problema gramatical. Trata-se de mudar o sujeito da frase… A pergunta que queremos fazer não é “como não deixar alunos para trás”, mas sim “quem é que não deixa os alunos para trás”. E a resposta torna-se simples: os professores, os educadores, ou seja, aqueles adultos apaixonados pela realidade, ao ponto de dedicar toda a sua vida a compreendê-la melhor, com o desejo de comunicar aos mais novos as maravilhas que foram descobrindo e que continuam a procurar. Tenho a certeza que quando este desejo arde no coração dos educadores, não descansam enquanto alguma criança, algum jovem ficar para trás.

Catarina Almeida