No fundo, também nós temos de escolher…

– Sou eu. Sou a fada Oriana. Voltei!
– Oriana – disse ele, rindo.
E ficou um momento calado. Mas depois o seu sorriso desfez-se, a sua cara tornou-se triste e dura. E perguntou:
– Onde é que estão as tuas asas?
– Já não tenho asas – respondeu Oriana, baixando a cabeça.
– Onde é que está a tua varinha de condão?
– Perdi-a – disse Oriana.
– Se és Oriana, encanta a noite.
– Não posso.
Então o Poeta disse-lhe, quase gritando:
– (…) Não és Oriana. O Mundo está desencantado. Oriana vive na floresta com as árvores, com o vento, com as flores. Aqui não há Oriana. Vai-te embora. Depressa. (…)
E o Poeta gritou:
– Desaparece! 


in
A Fada Oriana, Sophia de Mello Breyner Andresen

Tenho reparado que, para ler A Fada Oriana, para perceber Sophia e a sua expressividade, é preciso viver intensamente. Cada frase, cada personagem, cada encontro tem uma densidade que leva a pensar em nós e na nossa vida, na medida em que reconhecermos que todas as circunstâncias desafiam o nosso caminho. Sophia arranca-nos da superficialidade e mostra-nos uma espécie de quarta dimensão das coisas…
É o caso do encontro entre Oriana e o Poeta na cidade. É um episódio complexo: o Poeta – que era o único que podia ver as fadas – oscila entre o alheamento e a zanga com Oriana, ao ponto de a mandar embora (E o Poeta gritou: Desaparece!). Oriana, por seu lado, que procurava incessantemente o Poeta, saiu a correr escondendo a cara. Oriana esconde a cara exactamente porque a cara [dela] é igual à cara da fada Oriana mas não [tem] asas e não [pode] encantar a noite.
Oriana procurava um olhar e o Poeta, no fundo, também procurava o olhar de Oriana. Ambos são incapazes de olhar um para o outro porque se desencantaram. O aspecto mais interessante é que o desencantamento do Poeta o leva à solidão. Oriana, pelo contrário, ferida e debilitada, continua a procurar. Volta para a floresta, onde encontrará uma árvore para encostar a cabeça e chorar. A pergunta incessante e o desejo ardente de Oriana conduzem-na aparentemente ao abismo mas, na verdade, é mesmo aí que a salvação acontece.
O Poeta, por sua vez, afasta-se, desiludido e abandonado, zangado e absorto no seu mundo imaginário.
No fundo, também nós temos de escolher…

Catarina Almeida