O papel! Qual papel?, por Francisco Guimarães

“Há dias em que julgamos
que todo o lixo do mundo
nos cai em cima
depois
ao chegarmos à varanda avistamos
as crianças correndo no molhe
enquanto cantam
não lhes sei o nome
uma ou outra parece-me comigo
quero eu dizer:
com o que fui
quando cheguei a ser luminosa
presença da graça
ou da alegria
um sorriso abre-se então
num verão antigo
e dura
dura ainda.” (Eugénio de Andrade)

Em todos os pequenos cantos da terra sou chamado a desempenhar um papel. Um papel específico, concreto e inteiro, de guião bem estudado, de forma a encarar a realidade que se impõe altiva à minha frente. Não se trata de um exercício de fuga à totalidade daquilo que sou, em que encarno uma personagem inventada pelos meus maiores sonhos, não se trata sequer de um fingimento pessoano, mas sim de uma personagem real, espelhada em mim, por mim, atenta ao lugar onde estou, às pessoas com quem estou e àquilo que sou chamado a fazer. Por mais que eu queira e por mais que o mundo me ensine as coisas de uma outra forma, optar por contrariar a minha própria natureza egoísta, envolvendo-me com aquilo que me rodeia, pode ser a melhor solução.

No trabalho devo ser sério, brioso e afincado em cada tarefa que me é pedida, mesmo quando o cansaço se apodera do meu sangue. Na faculdade devo estar desperto, vivo e curioso para responder a fundo a todos os pontos de interrogação que se intrometem no meu caminho, ainda que apenas pairem arrogantes certezas. No meio dos amigos devo ser um deles, indo ao encontro de cada um, na esperança de que levo comigo a firmeza de que fica sempre tudo bem. E em casa devo ser um bom filho, um bom irmão, um bom neto, um bom sobrinho ou um bom tio, mesmo naqueles dias sombrios em que me esqueço intencionalmente de lavar aquele copo de que ficou a escorrer sumo de laranja fora da máquina.

Acontece que nem sempre descubro essas personagens em mim. São todas elas diferentes umas das outras e exigem dos meus gestos sensibilidades particulares, apesar de terem algo em comum – são tarefas caseiras e corriqueiras, aparentemente fáceis e banais, que têm a particularidade de exigir todos os meus maiores esforços, todo o meu empenho, mesmo quando não estou interessado em desempenhá-las. Quando subo as escadas para o começo de um dia de trabalho, quando escalo a custo a escadaria dos 10 degraus infindáveis de minha casa rumo ao descanso de um final de um dia, e os olhos, encarnados de cansaço e desilusão, se apagam e se esquecem de viver, o guião perde significado e fica refém da minha interpretação. O vaivém e o tumulto da vida desses dias sorvem todo o sangue que trago nas veias, e o meu olhar sempre limitado impede o encontro com a plenitude do horizonte eternamente belo e imenso.

Mas a riqueza mundana, rotineira, rasteira e banal sobressai de tal forma que nem os braços corrompidos pela marginalidade lhe são alheios. Os lírios serão sempre lírios ao sabor do vento e da chuva, as ondas do mar vigorosas de sal batem fortemente contra as rochas, o prato de sopa quente que a mãe cozinhou para o filho emana o sabor da terra, a realidade converge para um encontro tão visível com o centro da existência que todas as coisas vivas encontram um lugar. Os dias não acabam quando chego a casa, nem começam quando saio de casa – tudo é plenitude e nela habito, todos os gestos são rasto da minha própria casa de onde nunca saí, todas as histórias são pequenas migalhas que nunca se consomem, apenas se renovam pelo espanto que os meus olhos fitam e testemunham perante a grandeza da vida. Diante dela me curvo, não tenho outro caminho senão este, o de me apequenar correndo o risco de me desvanecer para que coisas maiores germinem – o caudal do rio é estreito até chegar ao mar, a semente perfura o chão de pedra para se transformar numa árvore coberta de fruto, a pele das cobras muda a cada três meses e fertiliza o solo. Tudo é matéria individual e dependente, tudo é matéria livre quando se pode dar ao luxo de estar submetido a uma missão que implora por um outro, tudo é cadência e ritmo se corresponder à harmonia das coisas simples. Pelo menos foi isso que aprendi com o meu irmão que, numa carta que me escreveu quando fui para a Índia, disse: “Entra no jogo deles, mais do que tentares impingir o teu, em todos os sentidos, e depois descobres coisas novas em ti. Abre-te à novidade, sem preconceito e ganhas. Procura a origem humana de cada diferença, em vez de tentares plantar à força plátanos em terra de jacas. E vais ver que ainda assim te destacas com a integridade que é própria tua.”

É em terra alheia que defino o meu espaço outrora oculto, é em terra alheia que viajo na encruzilhada de entregar a minha fragilidade aos outros, é em terra alheia que me espanto e que me alegro ao descobrir uma novidade ao olhar para a minha própria casa, para aquilo que é central, nuclear e vital.

Francisco Guimarães