Oiça-me, por favor!, por Catarina Almeida

– Professora, oiça-me, por favor!

Esta frase do Tomás acompanhou os meus últimos dias como um eco que vai e volta a soar nos ouvidos. Estávamos na sala de aula, primeiras semanas do ano; todos os professores sabem que há que despachar rapidamente as revisões para depois avançar na matéria nova, incrementar conhecimentos e as crianças ficarem mais felizes porque sabem mais coisas.

Verb to be, tell me about you, jogar Guess Who, mas com o guião da minha planificação, se faz favor. Ah, e sem demoras, que temos muito que fazer. Funciona sempre! Até que o Tomás pede para o ouvir.

– Espera, querido, já te oiço, agora vamos só acabar isto.

Vejo-o realmente incomodado com a minha indiferença e aproximo-me dele. Uma das coisas que mais admiro neste aluno é que não vai em tangas. Tem um coração vivo e não se rende enquanto não lhe derem o respeito merecido. Ao coração, claro.

O amuo passou em menos de nada, abriu os olhos brilhantes e contou-me que tinha ido ao Starbucks com a tia e que estava contentíssimo porque tinham escrito o nome dele no copo.

– A professora sabia que eles fazem isso? Eu acho mesmo uma boa ideia!

Eu hesitei. Que importância tinha aquele comentário? Que distrativo! E o verb to be ali por acabar, ainda por cima. Antes de desvalorizar o episódio, perguntei-lhe por que motivo se tinha lembrado daquilo numa aula de revisões sobre identidade, partes do corpo e características físicas.

Riu-se e não explicou. Continuou – finalmente! – a ficha de revisões. Mas agora era eu que estava incomodada com a ficha de revisões.

É que – finalmente! – percebi. Aquela proposta de conteúdos fê-lo voltar a uma experiência muito alegre na companhia de uma tia com quem convive poucas vezes; o nome no copo foi a cereja no topo do bolo de quem se quer sentir único, especial, reconhecido, amado.

O tal eco que ia e vinha ao longo dos dias tornou-se uma voz mais nítida quando me lembrei de uma frase que li recentemente, “existir é mais do que funcionar”.

Podemos querer que os miúdos funcionem: tal como as máquinas, damos o input, eles dão o output (ou seja, agem ou comportam-se de acordo com o que esperamos deles); até se podem enganar e o processo volta ao ponto em que ficou, mas tudo sempre e só com o objetivo de “funcionar”.

Ou podemos querer que os miúdos existam. Para isso, só há um caminho. Ouvi-los. Mas ouvi-los, atenção, quer dizer ouvir o desejo dos seus corações, que se manifesta nos comportamentos e nas ações, tantas vezes desajustados e desarrumados. E isto não significa cair na armadilha de achar que ouvir as crianças é tratá-los como pequenos ditadores tiranos que comandam o mundo. Nada disso.

Querer que os miúdos existam significa dar combustível àquele motor que se chama desejo e que habita cada um de nós. Esse combustível é o acolhimento que damos à pessoa da criança (em vez de a querer mudar ou moldar); esse combustível é a proposta clara de uma companhia orientada para a descoberta de si, dos outros e do mundo, numa atitude de humildade e obediência ao que a realidade nos mostra; esse combustível é a partilha verdadeira das perguntas que nós próprios temos e a oferta comovida de um caminho que se pode percorrer, pela gramática, pela história, pela matemática, enfim, pela vida.

Na medida em que o desejo crescer e aumentar, tornar-se-á fonte verdadeira de aprendizagens, de conhecimentos, de criatividade e de responsabilidade. E – finalmente! – as crianças poderão existir.

Por isso, sim, Tomás, posso-te ouvir e podemos descobrir juntos por que razão o teu coração salta quando vês o teu nome no copo do Starbucks e te lembras disso numa aula de revisões de inglês.

Catarina Almeida