Por uma pedagogia do desejo, por Catarina Almeida

Mal acabaram os fogos de artifício, brindes! A isto, àquilo, com passas, com gomas, com chocolates… A cada trinca, um desejo. Os dos adultos, em silêncio, claro – para não perder a compostura… Já as crianças:

– Acabar a caderneta dos Pokemóns!!!!!

– Mudar para a casa nova!!!!!

– Ter isto ou aquilo!!!!

Enquanto nos ríamos com os desejos dos miúdos, na sua maioria simples de se realizarem, dei por mim a dizer em voz alta que é importante estimular as crianças a desejar e a desejar muito. De imediato, senti um ou outro olhar ternurento e divertido dos meus amigos, como quem diz “lá está ela com teorias…”. Fiquei a pensar… será que é mesmo importante? E se sim, porquê?

Lembro-me de ser pequena e querer imensas coisas. Mais, de querer imenso imensas coisas.

– Quero… ou melhor, gostava muito de ter uma bicicleta!

Uma viola!

Uma boneca!

Uma tábua de engomar de brincar (porquê, senhores, porquê?!)!!!

Às vezes, em sopros raros, ouvia-se murmurar:

– Os meninos não têm quereres.

Lembro-me de ouvir esta frase e pensar mas eu queria mesmo. Quando em pequenino se começa a sentir o coração a saltar no peito, é muito evidente que o desejo existe e que ninguém consegue calá-lo. Por vezes, o seu ímpeto rasgado desmede-se e parece arrogância infantil ou mimo excessivo. Boas notícias: é assim mesmo, mas não há nada a temer!

A alternativa a este risco é uma espécie de cinismo mascarado de boa educação. Como se fosse melhor um conformismo silencioso, para não nos desiludirmos. Por isso mesmo, dei por mim a perguntar-me se seria justo incitar os miúdos a apostar no que lhes faz vibrar o coração.

E se não completarem a coleção dos Pokémons? E se não mudarem de casa? E se não houver dinheiro para a bicicleta? E se – ainda mais assustador – desejarem algo que não é bom, bonito, justo ou verdadeiro?

Aprender a desejar muito e sem medo é uma aventura em que rapidamente se tropeça nestas perguntas e noutras dificuldades, porque traz consigo sempre a inquietação e a insatisfação, mesmo quando encontramos aquilo que pensávamos desejar.

Quando temos necessidade de alguma coisa, por exemplo, sede ou fome, e essa necessidade se realiza (bebemos, comemos…), desaparece. Bem diferente é a dinâmica do desejo; quando encontramos o que desejamos, o desejo aumenta, cresce, aprofunda-se e raramente se extingue; pelo contrário, por exemplo, quando encontramos alguém de quem temos saudades, aumenta a alegria da companhia. Quanto mais encontramos aqueles que amamos, mais cresce o amor e o bem que lhes queremos, dos quais as feridas, as tristezas e os sofrimentos são sinal. Vale ou não a pena dizer aos miúdos para viver assim? A desejar muito, a pedir muito, a arriscar muito? E, por isso, a sofrer – às vezes muito?

E como é que se ajuda as crianças a entrar nesta aventura, se não for com os cromos de Pokemóns e as bicicletas? Não é questão de materialismo. Trata-se de perceber que desejar faz parte da nossa estrutura existencial, é realmente o motor que nos põe em movimento, que nos torna progressivamente protagonistas da vida pessoal, profissional, comunitária.

Como tudo na relação educativa, suscitar o desejo e a pergunta das crianças é um risco que precisa de ser vivido dentro de um encontro que ofereça uma hipótese de significado, um horizonte mais verdadeiro. O que existe numa caderneta ou numa viola, ou numa viagem, ou numa pessoa importante na nossa vida, de tão correspondente ao ponto de nos fazer descobrir tudo o que somos e mais o que não sabíamos ser?

Vale a pena dizer aos miúdos para viver assim porque é a única forma verdadeira e completa de descobrir quem são, de descobrir tudo o que são e que podem ser. Nós somos desejo e só a plenitude pode encher a medida do coração que deseja o seu cumprimento. Dizer menos do que isso é silenciar a vida.

Nestes dias de despedida do Papa Bento XVI, recordo-o também porque me ensinou a pedagogia do desejo, grata pelo testemunho paterno de um coração que desejou muito até ao fim.

« (…) Cada bem experimentado pelo homem tende para o mistério que envolve o próprio homem; cada desejo que se apresenta ao coração humano faz-se eco de um desejo fundamental que nunca é plenamente saciado. Sem dúvida, deste desejo profundo, que esconde também algo de enigmático, não se pode chegar directamente à fé. O homem, em síntese, conhece bem o que não o sacia, mas não pode imaginar ou definir o que lhe faria experimentar aquela felicidade da qual leva no coração as saudades. Não se pode conhecer Deus só a partir do desejo do homem. Sob este ponto de vista permanece o mistério: o homem é indagador do Absoluto, um indagador que dá passos pequenos e incertos. E contudo, já a experiência do desejo, do «coração inquieto» como lhe chamava santo Agostinho, é bastante significativa. Ela confirma-nos que o homem é, no profundo, um ser religioso, um «mendigo de Deus». Podemos dizer com as palavras de Pascal: «O homem supera infinitamente o homem» (Pensamentos, ed. Chevalier 438; ed. Brunschvicg 434). Os olhos reconhecem os objectos quando eles estão iluminados pela luz. Eis por que o desejo de conhecer a própria luz, que faz brilhar as coisas do mundo e com elas acende o sentido da beleza. (…)»

PAPA BENTO XVI, AUDIÊNCIA GERAL, Praça de São Pedro, 7 de Novembro de 2012

Catarina Almeida