Precisamos de Gertrudes!, por Catarina Almeida Então Joana foi à cozinha ver a cozinheira Gertrudes, que era uma pessoa extraordinária porque mexia nas coisas quentes sem se queimar e nas facas mais aguçadas sem se cortar, e mandava em tudo, e sabia tudo. Joana achava-a a pessoa mais importante que ela conhecia. in A Noite de Natal, Sophia de Mello Breyner Na última semana aconteceram-me uma série de episódios trágico-cómicos que me fizeram pensar que precisamos de mais Gertrudes. Quem ler “A Noite de Natal” rapidamente percebe que a cozinheira não é autoritária, nem opressora, nem guru, nem tirana. Mas, então, porque tem tamanha autoridade na vida da Joana? O que tem ela de especial? Ela era uma pessoa extraordinária porque mexia nas coisas quentes sem se queimar, que é como quem diz, ela tem um conhecimento do mundo, do quente e do frio, que interessa à Joana. Porque não se queima e não se corta, mas também porque sabe tudo, é a pessoa mais importante porque é uma adulta. Que sabe tudo e manda em tudo. Temos escolas com “flexibilidade curricular” que dão liberdade às crianças, que pensam as rotinas e os programas em função dos interesses e vontade dos alunos; temos famílias que se organizam em torno das crianças, primordial prioridade das preocupações generalizadas. Queremos que as crianças tenham voz e “voto” na matéria. Criamos condições para que possam ser mais competentes e autónomas, cada vez mais cedo. Ainda assim, reparo que os miúdos estão cada vez mais desligados, absortos, ausentes. Para os tornar “participantes”, esquecemo-nos que o interesse não se desperta do nada, nem sozinho, nem por magia. Abandonar as novas gerações ao que sair das suas cabeças é perigoso e começamos a ver já os sinais de uma cultura que morre lentamente. Precisamos de mais Gertrudes, ou seja, de adultos que despertem as crianças, que as acordem do adormecimento em que vivem. Como se faz isso? Mexendo nos tachos e afiando as facas! O que pode verdadeiramente interessar os miúdos senão a sã inveja de querer ser grande para saber mais, para fazer mais, para ser mais…! Precisamos de mais Gertrudes, de adultos, de gente grande para quem as crianças possam olhar e a quem se possam ligar, com a mesma consciência da Joana: «[ela] conhecia bem o mundo, as coisas e os homens». Catarina Almeida