Qualquer migalha da nossa natureza serve para nos redimir

E daí em diante nunca mais foi ver o Poeta. Esqueceu-se de todos os seus amigos. A única pessoa que ela continuava a visitar era a velha, porque sentia imensa pena quando a ouvia dizer que em tempos idos tinha sido nova e linda e agora era velha, enrugada e feia. Por isso, todas as manhãs lhe acendia o lume, lhe punha leite na caneca, café na lata, açúcar no açucareiro, pão com manteiga na gaveta e depois a guiava ao longo do caminho da cidade, para que ela não caísse nos abismos.

in A Fada Oriana, Sophia de Mello Breyner Andresen

Abandonou todos os seus amigos, até o Poeta. Bem… todos não. Ainda ia a casa da velha “porque sentia imensa pena quando a ouvia dizer que em tempos idos tinha sido nova e linda e agora era velha, enrugada e feia”.
A Fada Oriana, inebriada com a sua beleza, desligou-se da tarefa que lhe tinha sido confiada; centrada em si, nos seus penteados, nos seus olhos, na sua beleza elogiada pelo Peixe, afastou-se de todos menos da velha.
A relação com a velha diz-nos duas coisas importantes. A primeira, talvez mais óbvia, é que Oriana tinha pena da velha porque antevia uma possibilidade sobre si própria. Claro: a velha tinha sido bonita como ela era agora. A fragilidade deste entusiasmo é representada pela perspetiva da vida da velha. Há como que uma intuição perturbadora, um véu de rugas que espreita através da velha… A juventude caminha para a velhice, a pele enche-se de defeitos, a beleza esvanece e, no fundo, Oriana sabe tudo isto.
A segunda coisa que a ligação da Oriana à velha nos diz é mais profunda. Sabemos que no fim desta história Oriana, já destituída das suas asas e da sua varinha, será confrontada com as consequências do seu esquecimento. Quando repara no que se transformou, Oriana é impotente para ajudar os seus amigos. Num momento crucial em que arrisca a vida para salvar a velha, esquecendo-se de si e lançando-se sem asas no abismo, a Rainha das Fadas salva-a a ela e à velha.
Sem asas, sem varinha, sem amigos, sem alegria, Oriana enfrenta o drama de ter faltado à promessa feita à Rainha das Fadas. E é precisamente a relação com a velha que se torna essencial para que Oriana volte a ser fada. 
Oriana não tinha pena da velha só por a sua beleza se ter transformado em miséria. Sophia sabe que há uma “ordem secreta das coisas” em que qualquer migalha da nossa natureza serve para nos redimir e, por isso mesmo, não desliga Oriana da velha porque através da última réstia da sua natureza, será salva.

Catarina Almeida