Se é amargo, não quero…, por Catarina Almeida

– Bebe isto e em poucos dias estarás recuperado.
– É doce ou amargo? – perguntou o Pinóquio.
– É amargo, mas vai fazer-te bem.
– Se é amargo, não quero.
– Ouve o que eu te digo: bebe.
– Não! É amargo!
– Bebe primeiro, depois dou-te açúcar para adoçar a boca.
– Primeiro quero o torrão de açúcar e depois bebo…
A Fada deu-lhe o torrão, e Pinóquio, depois de o ter mastigado e engolido, levou o copo de remédio à boca. 
– É muito amargo! Muito amargo! Não posso beber.
– Como podes dizer isso se nem a provaste?
– Quero antes outro torrão e depois bebo.
Então a Fada, com toda a paciência de uma boa mãe, pôs-lhe na boca mais um bocadinho de açúcar…

Com a ajuda dos seus amigos, a Fada salvou o Pinóquio que estava (quase) morto. Quando o acolheu na sua casa, deu-lhe a beber um remédio amargo, para o recuperar e curar. Um remédio amargo?! Se é amargo, não quero

O genial diálogo entre ambos pode ser reduzido a uma experiência sobejamente conhecida entre pais e filhos, entre adultos e crianças: se queres aquilo, faz primeiro isto que te digo ou para teres isto, tens primeiro de te esforçar ou primeiro suas e depois logo recebes a recompensa…

Tudo isso é real na nossa vida: quantas vezes foi necessário passar por uma provação para alcançar algo mais suave, ou atravessar uma floresta escura para ver uma Luz mais clara e mais transparente?

O moralismo em que fomos educados, a ditadura “das boas pessoas” teima em nos querer convencer que existe uma espécie de estoicismo necessário à nossa purificação.

Não, não e não. Não é isso que a Fada faz. Aliás, a história continua além deste trecho com a Fada a mostrar pacientemente ao Pinóquio que só aquele remédio amargo o pode curar; e a dar-lhe o açúcar que ele pede, e a fazer-lhe “as vontades todas”, para que ele beba. O boneco só se convence mesmo à beira da morte num episódio que vale a pena ler na íntegra.

A Fada ensina-nos a não poupar os nossos filhos ao embate com as coisas amargas; mas não o faz para “os fortalecer”, ou para serem “valentes”. Não o faz para “o tornar melhor”. Fá-lo porque é “uma boa mãe”, que conhece a vida como caminho, e a natureza das solicitações que as curvas e as subidas trazem. São um convite a aderir a um Bem, a um Açúcar, que está disposto a aceitar e abraçar toda a amargura. A nossa, a dos nossos filhos, a do mundo inteiro.

Mas… e o que nos diz a teimosia do Pinóquio?

Que só aceitamos o remédio amargo se “valer a pena”. Se a pena, o sacrifício, a dificuldade, o cansaço tiver um valor – se for vital. Se nos fizer viver. 

O Pinóquio tem ainda uma grande aventura pela frente, até compreender definitivamente que, para ser um menino de verdade, é preciso aceitar este mistério das coisas vitais: as coisas que nos fazem viver verdadeiramente pedem um trabalho, uma tarefa. No limite, pedem um sacrifício.

Curiosamente, a Fada, não lhe enfia o remédio pela goela abaixo. Não seria mais eficaz? Só que a Fada conhece o drama da liberdade do Pinóquio. “Como boa mãe”, sabe que a sua missão é um convite permanente e, por isso, propõe, reinventa, espera e – sobretudo – está presente ao longo de toda a aventura, a amparar e confortar o caminho até o boneco se tornar um menino de verdade.

Catarina Almeida