Serei eu feita para um milagre?, por Catarina Almeida

Pobre Mirabel, a protagonista do filme Encanto!… 

Nasceu na família Madrigal, um clã pródigo em dons e talentos, mas a pequena Mirabel é a única que não recebeu nenhum. Os tios e primos distinguem-se das formas mais originais: têm uma força invulgar, curam pessoas com refeições deliciosas, fazem lindas flores num estalar de dedos, transformam a sua aparência, compreendem a linguagem dos animais… A Mirabel, por sua vez, não tem nadinha de especial. Nada. É absolutamente normal.

A casita acolhe os dons dos seus membros e a comunidade de amigos e vizinhos que são continuamente ajudados pela família Madrigal, com a abuela à cabeça.

No meio de alguma incompreensão, Mirabel não se atrapalha. Está decidida a viver a sua circunstância, sem remorsos e com alegria. Mas começa a tornar-se difícil: a sua presença e as suas ações parecem atrapalhar a magia em que todos vivem.

Triste e desorientada, canta numa espécie de confidência: algo novo eu procuro, quem eu sou não sei, mas no meu futuro estou à espera de um milagre e aqui vou, estou aqui, serei eu feita para um milagre?

Nesta angústia de se sentir posta de parte de uma história que une os seus queridos, grita, pede que lhe seja dado um dom; não para se afirmar, mas para poder pertencer totalmente. E fá-lo através de uma pergunta fundamental: serei eu feita para um milagre?

Quase sem querer, cruza-se com a história do tio Bruno (não falamos do Bruno!), renegado pela família, porque o seu dom – ver o futuro – trouxera amarguras e problemas. Por se sentir próxima deste afastamento, segue o seu coração e procura deslindar o mistério que se abateu sobre os Madrigal, quando a magia começa a falhar: os membros da família, que até aí viviam completamente dominados pelos seus dons e até pela obrigação de servir a casita e a comunidade com os seus talentos, começam a encontrar obstáculos e falhas no que antes era a sua consistência. Isabela di-lo na perfeição: eu quero algo verdadeiro, tu não?

Não vou contar mais detalhes porque é um filme que vale muito a pena ver. É um filme para crianças, capaz de lhes falar com clareza, mas oferece às famílias uma possibilidade de se reconhecer e de descobrir o que desejamos, como pessoas e como comunidades.

A alternativa é simples… Os Madrigal viam-se naquilo que faziam. E o que faziam era bom! Muito bom! Punham os seus dons ao serviço dos que mais precisam e acreditavam que esse era o caminho para a felicidade. Como se o destino estivesse desenhado e eles fossem apenas peças com jogadas previamente decididas segundo os seus dons. Pertenciam aos seus dons, ao que era “suposto” fazer, enquanto a Mirabel, por – aparentemente – não ter um dom concreto, tinha de decidir a cada momento como amar, como construir, como viver com tanta fragilidade.

Curiosamente, a Mirabel é a mais livre de todas, porque é a que pertence mais. As suas incapacidades são constantemente vencidas pela única certeza que nunca desmorona ao longo do filme. Quando tudo parece destruído, é o seu coração preso à família e ao bem de todos que os salva. Como? Com o dom da Mirabel, o tal milagre que todos desejavam, mesmo sem saber.

Catarina Almeida