Embora não a visse, sabia que ela estava ali As fadas só se mostram às crianças, aos animais, às árvores e às flores. Por isso a velha nunca via Oriana; mas, embora não a visse, sabia que ela estava ali, pronta a ajudá-la. A Fada Oriana, Sophia de Mello Breyner Andresen No outro dia li às crianças a parte d’A Fada Oriana em que ela vai a casa da velha. Diverti-me a imitar os gestos de fada e os gestos de velha e os miúdos deliciaram-se com os meus dotes teatrais. Ainda assim, os olhos esbugalharam-se quando li a velha nunca via Oriana; mas embora não a visse, sabia que ela estava ali. Claro, as suas vidas marcadas pelo concreto, pelo palpável, pelo sensorial, pelo imediato, não contemplam com facilidade a categoria com que Sophia introduz a relação entre a velha e Oriana. Embora não a visse, sabia que aparecia o café, aparecia o leite, aparecia o açúcar… E um dos meus alunos mais expeditos no raciocínio, não contém o que todos estão a pensar: Professora, mas… as fadas existem mesmo? Sem pensar muito, decidi não lhe responder. Sorri e sugeri-lhe que procurasse respostas àquela e a todas as perguntas que fossem surgindo à medida que nos aventuramos n’A Fada Oriana, com a promessa de voltarmos a esse tema no fim da leitura do livro, lá para março. Aceitou o desafio sem hesitar. E eu dei por mim a pensar por que razão a autora dos substantivos concretos terá dedicado tempo a uma Fada. É que Sophia ama o que existe e as fadas… não existem. A mesma Sophia que vibra com frutos, árvores e flores, com peixes e copos, com florestas e com o mar, escolheu falar de si e do mundo através de uma Fada. Já intuímos que vamos descobrir muito sobre nós próprios através d’A Fada Oriana e a primeira coisa tem a ver com a nossa relação com o que existe. As coisas mais importantes da minha vida são como a Oriana. Nunca vi o amor dos meus pais, mas vejo os gestos com que dão a vida por mim; nunca vi a amizade dos meus amigos, mas vejo a companhia concreta que fazem às minhas alegrias e às minhas dores; nunca vi a liberdade, mas conheço bem a experiência de ser livre… No tempo da “pós-verdade”, em que os factos objectivos foram arredados para um canto por manipulações emocionais, para ter certezas na vida, é útil recuperar a experiência concreta que fazemos das coisas e a dinâmica do sinal. Era essa a experiência da velha. Embora não a visse, sabia que ela estava ali. A velha não tinha açúcar e ele aparecia. Sem hesitar, dizia “Se não fossem as fadas, o que seria de mim?”… Catarina Almeida