Um pulo na garganta, por Catarina Almeida

Então viu que no céu, lentamente, uma estrela caminhava.
«Esta estrela parece um amigo», pensou ela.
E começou a seguir a estrela.

in A Noite de Natal, Sophia de Mello Breyner

 

A história é simples: no princípio da história, a Joana não tinha amigos, só sabia brincar sozinha. Tinha vagamente uns primos mas eram visitas. Nunca tinha tido um amigo. Só que quando vê o Manuel pela primeira vez, exclama: «Ah, parece um amigo! É exactamente igual a um amigo!». Já refletimos muito sobre isto… Se ela nunca tinha tido um amigo, como o reconheceu? 

Agora aparece uma nova questão. Depois de ter feito aquela experiência certa e inabalável de reconhecer um amigo, volta a acontecer-lhe a mesma coisa com a estrela. Está no meio da rua deserta e assustadora, cheia de medo, e volta a ser captada pela presença de algo misterioso mas não desconhecido: uma estrela que parecia um amigo, tal como o Manuel parecia um amigo.

É por estas e por outras que tenho cada vez mais a certeza que nos nossos dias, neste contexto histórico, cultural e social, é urgente educar para esta experiência, para que o coração de cada criança e jovem possa reconhecer o que lhe corresponde, sem que ninguém o possa enganar. Muitas vezes podemos confundir este “educar o coração” com apologias, valores ou até – nos piores casos – ideologias mas só uma experiência verdadeira pode fazer com que o coração “[dê] um pulo na garganta” e saiba que aquilo é exactamente o que esperava, o que desejava, o que lhe faltava, ainda que confusa ou inconscientemente.

E o que caracteriza esta experiência?

Em primeiro lugar, há sempre alguma coisa fora de nós… Um garoto que passa pela rua, uma estrela que caminha lentamente no céu. Alguma coisa que não controlamos nós, que não produzimos nós e que, por isso mesmo, pede que reparemos nela e nos deixemos interpelar por ela. Isto pede abertura, pobreza, humildade, o que lhe queiramos chamar, mas certamente, pede um despojamento e um desejo verdadeiro de abraçar a realidade fora de nós como possibilidade de realização (vs. os nossos pensamentos e projectos, por mais perfeitos que sejam…)

Depois, é preciso ser inteiro. As palavras leal, honesto, comprometido ou empenhado são curtas para dizer isto porque todas têm dentro uma ideia pré-concebida de alguma coisa à qual é preciso corresponder, uma regra ou um preceito, ou até uma moral justa e adequada. Mas é preciso mais do que isso, é preciso que aquela beleza reconhecida arraste até à mais pequena fibra que nos constitui e nos faça entrar em relação. Depois da interpelação (esta estrela parece um amigo), a relação (e começou a seguir a estrela).

De forma simplista, claro, é necessário abraçar tudo o que esse “seguir”, essa relação traz. A alegria de descobrir o jardim juntos, a tristeza quando o Manuel não tem presentes, o medo e a confusão, o frio e o desnorte, até o desejo de fugir. Abraçar tudo sem se fechar num “quarto” aparentemente mais seguro. Há muitos “quartos” destes na nossa vida e das nossas crianças… 

Parece fácil e imediato mas, confesso, todos os dias dou por mim a ter que decidir… O que oferecer aos miúdos: as minhas ideias (certas e verdadeiras, atenção!) ou uma relação viva e constante, isto é, a participação na minha própria vida cheia de limites e contradições, mas também tão cheia de momentos em que o coração pula na garganta por encontrar exactamente o que procura…?

Catarina Almeida