Uma luz sem sombras Os copos passavam a sua vida fechados dentro de um grande armário de madeira escura que estava no meio do corredor. Esse armário tinha duas portas que nunca se abriam completamente e uma grande chave. Lá dentro havia sombras e brilhos. Era como o interior de uma caverna cheia de maravilhas, e segredos. Estavam lá fechadas muitas coisas, coisas que não eram precisas para a vida de todos os dias, coisas brilhantes e um pouco encantadas: loiças, frascos, caixas, cristais e pássaros de vidro. (…) Nos dias de festa, do fundo das sombras do interior do armário saíam os copos. Saíam claros, transparentes e brilhantes tilintando no tabuleiro. E para Joana aquele barulho de cristal a tilintar era a música das festas. (…) in A Noite de Natal, Sophia de Mello Breyner Andresen Os copos. Li e reli os primeiros parágrafos sobre A festa que começa em casa da Joana e não conseguia perceber o porquê de tanta importância aos… copos?! Tive a sorte de estar ao pé de uma amiga com quem partilho o entusiasmo por Sophia – e tantos outros entusiasmos na vida – e foi a vez dela. Leu e releu. Os copos… A minha amiga continuou a ler o conto até ao fim e, de repente, reparou num pormenor daqueles que confirmam a nossa intuição inicial de querer aprender a olhar para a vida como a Sophia. Os copos estão no armário onde se guardam as coisas que não são precisas para a vida de todos os dias; essas coisas são brilhantes e um pouco encantadas mas vivem envoltas nas sombras do armário. Claro, quando os copos saem do armário vêm claros, transparentes e brilhantes e o seu tilintar é a música das festas. Só que na vida de todos os dias, vivem nas sombras. Há, no entanto, momentos de festa em que os copos, as loiças, os frascos e os cristais são tudo o que vemos. São momentos que têm o valor de reavivar o desejo de luz que existe no nosso coração porque ele está feito para a Luz. Uma Luz eterna sem sombras. Como a luz que o Manuel trouxe à vida da Joana: uma luz sem nenhuma sombra. E Joana viu o seu amigo Manuel. Estava deitado nas palhas entre a vaca e o burro e dormia sorrindo. Em sua roda, ajoelhados no ar, estavam os anjos. O seu corpo não tinha nenhum peso e era feito de luz sem nenhuma sombra. Catarina Almeida