Uma vertiginosa experiência, por Francisco Guimarães Estado de emergência: dia 9 Estou debaixo de terra à procura de respostas e elas não aparecem, não brotam daqui, como fazem as flores quando lhes atiram com água e adubo para as suas raízes. Na minha enxada só aparecem pedaços de barro em forma de perguntas, pedaços corpulentos e granulosos, que se acumulam à imensidão terrosa que ali construiu a sua montanha imponente. Perguntas, perguntas e mais perguntas! Desço mais ainda em direção ao fundo. E agora olho para cima e vejo apenas restos de argila e de pó. Está escuro. Estou no mesmo sítio que Franz Kappus, o jovem que trocava correspondência com Rilke, que o aconselhava a olhar para o lugar onde poderia encontrar o mais profundo dele mesmo. Aqui, sim, nas profundezas silenciosas, vazias, vãs e cheias de nada, aparentemente. A enxada que trago na mão está coberta de água, a mesma água que ontem caía sobre o Papa numa das imagens mais comoventes que vi até hoje – a Praça de São Pedro totalmente desabitada, um Papa a carregar às costas a incerteza do mundo, visivelmente débil, humano, cheio de vida, a encarar a solidão e um silêncio atordoante de onde irradia a esperança, iluminados pelo reflexo reluzente da chuva, pelo azul do fundo do mar que batia nas paredes da Basílica e pela serenidade de quem sabe que não está só. Depois de duas horas numa mudez impotente de quem não consegue falar, percebi que não havia razões para ter medo. Eu, que até me submeto ao afastamento em muitas horas do meu dia, ainda não tinha encontrado uma razão para o fazer agora. Sinto que tenho muitas coisas para fazer, procuro ocupar o meu dia como se tratasse de uma quarta-feira vulgar, para me entreter e não me fartar da monotonia rotineira e sempre igual. Entrar pelos caminhos do nada não me parecia a solução, mas estes não são tempos como todos os outros que conhecemos… Até que me lembrei daquilo que o Rilke queria dizer, recordando também a “vertiginosa experiência” que tinha feito no Deserto da Judeia há um ano e meio, essa experiência onde estamos reduzidos à nossa vulnerabilidade, com um coração ardente que quer ser mais alto, essa experiência onde se revela o vento frio que perfura a pele frágil até aos ossos. Percebi que, para além de um dia atarefado e distraído como forma de passar mais rapidamente a quarentena, preciso do silêncio e do vazio. Não como vácuo ou fuga aos problemas e à vida, não para atingir aquele ponto onde o cérebro não opera, não para reduzir o meu pensamento a meros grãos de areia, mas como instrumento essencial à mudança e ao crescimento, como porta que se abre para um acontecimento pleno e cheio de significado. Francisco Guimarães