Uma vontade sem amor No outro dia vi uma criança de seis anos, com a maior das calmas, a aparar o seu lápis de carvão… para o chão! Ele rodava o afia-lápis com assertividade e, na minha percepção desta cena, as aparas caíam em câmara lenta. Fiquei estarrecida. Chamei-o e perguntei-lhe com a réstia de voz que sobrou: – João, por que estás a afiar o lápis para o chão? Não vês que as aparas caem e o chão fica sujo? – Ah… [um “ah” como se eu tivesse falado russo]. Eu depois apanho! E preparava-se para continuar – airoso – a repetir aquela rotação perturbadora. Não fora o meu semblante de puro choque… – Professora, mas qual é o problema? Eu depois apanho, prometo! Género literário à parte, esta cena aconteceu com mais ou menos drama. Como se fosse normal, aparar lápis para o chão, até porque rapidamente descobri que é um gesto difuso em várias salas e escolas. Como é que isto é possível? As nossas crianças estão a crescer cheias de competências, capacidades, skills e coisas dessas mas raramente se dão conta que cada gesto, cada palavra, cada bocadinho de si, cada expressão de si encontra imediatamente uma alteridade: pessoas, objectos, chãos de salas, cujo aprumo não é uma questão de regras mas de beleza e de ordem, tão necessárias para vermos mais e melhor o mundo. As nossas crianças crescem assim provavelmente porque nos vêem repetir gestos vazios de significados, formais, disciplinadores e robotizados; crescem assim porque nós vivemos tantas vezes o que a Sophia chama “uma vontade sem amor” porque o amor “é uma transparência entre duas pessoas” e nós já não nos vemos uns aos outros. Já não vemos os outros e, sem ver os outros, não há amor. As nossas crianças desejam crescer à transparência, a ver-se e a ver-nos transparentes, capazes de lhes propor gestos tão cheios de significado, de Beleza, de Verdade, de Justiça, de Bondade, que até um lápis é afiado com o coração. Para dentro do caixote do lixo. Catarina Almeida