Voltar ao lugar, por Francisco Guimarães

ESTADO DE EMERGÊNCIA: DIA 1

Estou no quarto, sozinho, a pensar, a ler e a escrever, enquanto a recém afamada aplicação “House Party” está ligada por se tratar de uma forma de sentir a presença dos meus amigos. À minha frente, está um computador com o cursor a piscar, desesperado por ideias. Ao meu lado, encontra-se uma chávena de chá quente, transbordando o calor de ter a família comigo, mesmo que não nos possamos tocar ou sentir. Lá longe, na sala, ouço de olhos e ouvidos bem abertos o meu irmão a tentar voltar a tocar bateria. Imaginem vocês, montou um sistema de som na sala, com a bateria acústica coberta de pó, com umas colunas, um piano e duas guitarras. Enlouqueceu e ainda estamos nos primeiros dias. Se as coisas continuarem assim, convido os Capitão Fausto para virem tocar a este estúdio (sem contato físico e todos a 3 metros de distancia, claro). Se fossem tempos corriqueiros, talvez já estivesse a correr para a sala a pedir-lhe que parasse porque me quero concentrar. Ao invés disso, é o impacto da baqueta na tarola que me mantém acordado. Sim, acordado, vivo! Do outro lado da casa, escuto outros ruídos que se assemelham a uma orquestra, e que fazem ressoar em mim tempos de infância, de quando decorava a tabuada. O ferro de engomar, por exemplo, que, nas mãos da minha mãe, se torna na metáfora perfeita para todo este alvoroço à volta de um organismo milimétrico, porque alisa e humedece aquilo que outrora esteve sujo, enrugado e seco e que, todos sabemos, vai voltar a sujar-se. E ainda bem. Talvez seja essa a única forma de poder voltar ao lugar de quem seja capaz de tornar aquilo num exemplo de brilho e de esplendor.

Apresso-me para as escadas de onde se vê a casa da minha irmã, e olho para uma porta trespassada pelo olhar curioso de quem quer sentir a sobrinha a chorar, amparada pela mãe, pai e bisavós, que só o amor pode conhecer em profundidade.

Por entre os meus pensamentos díspares e inquietos por não perceber ainda o que é isto da quarentena, os amigos que veem que estou online interrompem-me como um pai que entra pelo quarto adentro a perguntar de quem são os sapatos espalhados pela sala. Pai esse que hoje, apesar de afastado pelo raio do vírus, está tão presente como sempre esteve em cada passo que dou.

Estar perante estas circunstâncias com a consciência de uma presença pode dar significado e um propósito àquilo que vemos, lemos e ouvimos todos os dias.

Que tempo é este que me pede distância e silêncio, mas ao mesmo tempo, uma proximidade comigo e com os outros nunca antes sentida?

Francisco Guimarães