Não és de ninguém?, por Catarina Almeida – A professora sabia que houve um menino que pegou numa faca e atacou seis amigos na escola? – Sei, Miguel. Os meus seis companheiros de almoço deixavam transparecer alguma urgência em falar sobre o tema, misturada com aquela vergonha com assuntos delicados ou dos quais não conhecemos o suficiente para antecipar a direção da conversa… Já eu deixei-me ficar num silêncio profundo. Observei-os, enquanto se entreolhavam à espera da habitual argumentação que promove um diálogo sobre os temas que surgem à mesa. Temos apostado na abertura a qualquer tema que os alunos tragam, por muito difícil ou superficial que seja, para potenciar a capacidade de juízo e conhecer melhor as crianças, as suas vivências e os seus pensamentos. Desta vez, fiquei só a olhar para eles. Fui assaltada por uma pergunta: será que a nossa proposta educativa é suficientemente completa e verdadeira, ao ponto de contribuir para que os nossos alunos procurem sempre o Bem, a Verdade e a Beleza, e rejeitem tendencial e afincadamente o Mal que sempre assola os nossos corações? Os seis camaradas continuavam perplexos com o meu silêncio e continuaram a conversa, repetindo o que ouviram dizer na televisão ou em conversas de adultos. Que o menino ia para uma prisão de crianças, que já não podia ir para a escola, que devia ter problemas e ser mau. Enquanto isso, eles espreitavam pelo canto do olho a ver se eu dizia alguma coisa. E eu continuei absorta nos meus pensamentos. Mas claro, há sempre a liberdade. Nenhuma escola, nenhuma família, nenhum conjunto de regras e valores, por mais perfeitos que sejam, podem assegurar o recto caminho das crianças e dos jovens. E depois com tanta porcaria que vêem e ouvem, numa solidão terrível, num mundo tão confuso. – Professora… – insistiu o Miguel. – Por que é que acha que ele fez aquilo? Catrapum! Voltei rapidamente dos meus pensamentos. – Não sei. Mas vou pensar um bocadinho melhor e para a semana falamos sobre isto com todos. Para a semana é esta semana. A primeira coisa que se torna evidente é a frágil condição em que as crianças e os jovens se encontram a viver. É preciso tomar consciência da natureza do problema para o poder enfrentar. Não basta “resolver” os episódios, arrumando as crianças em centros educativos e longe da vista, longe do coração. O que está em crise profunda, na educação das crianças e os jovens, é a capacidade de entrar em relação com a realidade. Desde logo, com a realidade de cada um. A armadilha está instalada de forma subtil e dissimulada. Dizemos-lhes desde pequenos: és tu que decides quem és, o que comes, o que vestes, o que vês, o que ouves. És dono de ti próprio. Quando alguém nasce, nasce selvagem e não é de ninguém. Este hit musical e cultural transformou silenciosamente a experiência de ser filho, de pertencer a um lugar, do qual dependemos porque nos revela quem somos, desde pequeninos. Temos um nome, um corpo, um temperamento. E tudo isso é dado. Temos uma mãe que nos alimenta e cuida do nosso conforto. E tudo isso é dado. Começamos a crescer e poderíamos continuar a constatar que a realidade, antes de mais, é um dado. Acontece que estamos convencidos de que a máxima liberdade é rejeitar tudo o que (nos) é dado. No último século, assistimos com perplexidade à violência crescente, à destruição de qualquer possibilidade de diálogo e de relação amistosa com pessoas e ideias diferentes de mim. Claro, rejeitando o outro e a realidade como dado, eu sou a medida da verdade e da razão. Fora de mim, só existe tirania e opressão. Mas a verdade é que esta semana tenho de falar sobre isto com os miúdos. Que respostas temos? Há uns anos, um amigo convidou-me a imaginar uma criança perdida na Feira Popular. Ficaria seguramente assustada com as luzes, os sons, as pessoas desconhecidas que poderiam significar uma ameaça. Depois, pensámos na mesma criança, na mesma Feira Popular, de mão dada com o Pai, desejosa de se aproximar das luzes das atrações, a saltitar de alegria com o som das músicas, a pedir para furar no meio de tantas pessoas desconhecidas, mas companheiras daquela aventura. A primeira resposta é precisamente a possibilidade de sermos (e termos!) Pais, Mestres, Companheiros de aventura, cuja mão forte e serena permita aos jovens entrar na vida como uma criança de olhos arregalados na Feira Popular. A cultura contemporânea procurou matar Deus, o Pai, condenando a experiência de uma dependência constitutiva como fonte da maior liberdade. O que ganhámos com isso? As fragilidades das nossas crianças e jovens são um assunto sério. Dizia Hannah Arendt que “a educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele”. É urgente tomar uma decisão. Catarina Almeida